A lenda do Índio Cardoso (Causo)
Nessa vida já vi de tudo, porque a idade me vai longe
Já fui padre, já fui monge, já fui plebe, já fui rei
Já fiz coisa que nem sei, nas andanças que lhe falo
Que d'asvêis me trai a consciência do que digo ou do que calo
Mas é mesmo pra isso que venho aqui
Pra contá as experiença dessa vida que vivi...
Desde o tempo de piazito, coisa igual não tinha visto
E olhe que sou homem vivido, como já lhe havia dito
Só não vou incurtá a história, que é pra não perder o detalhe
Peço que Deus me ajude ! E que a memória não me falhe !
A história que lhes conto, foi comigo o sucedido...
Reitero aqui o pedido, que a memória não me falhe !
Não me importa quem não goste, mas sou índio direto
Quando abro minha boca não sô de fazer rodeio
Meu avô que m'insinô o que era errado e o que é certo
Vou direto no assunto, minha língua não tem freio
Antes de começar, eu só quero abrir um parênte:
Quero que me caia todos dente se não alembrá de tudo
E se menti uma palavra, melhor que Deus me deixe mudo
Mas é pra isso mesmo que hoje venho aqui
Pra contá as experiença dessa vida que vivi...
Ao relato que lhes trago, que agora se inicia
Peço toda atenção, pai João, mãe Maria
A história é muito antiga, mais antiga que o tinhoso
Se preparem para a Lenda do Pau do Índio Cardoso
Cardozinho nasceu pobre
pobre de marré, marré
num chatô de pauapique
num ranchinho em São Sepé
lá no meio das capoêra, desse mundo sem fronteira,
onde pouco vale a fé
Não preciso nem falar
dos problemas que passou
tinha por pai o avô, curandeiro da região
maula véio mui severo, mau caráter, fanfarrão
lhe ensinava dos remédio,
com as planta da região
A infância deixou marca
nesse nosso rapazote
manejava das arma ao serrote
construiu sua Constituição
De nascença Guaporé, de legado a profissão
Foi viver a sua vida num ranchinho a beira-chão
E foi lá que aperfeiçoou
todo aquele ensinamento que tivera do avô
misturava funcho e carqueja, curava todas' brotoeja
da infância que a vida lhe levou
E logo ficou conhecido,
teve fama e galhardia
E se alguma pereba ardia, pelo povo era chamado:
Busca logo o Cardozinho, mó'de im'bora esse mandado !
Tempo de revolta e traição
de magia e revolução
Cardozinho virou o ouro do povoado e da região
Mas é pra isso mesmo que hoje venho aqui
Pra contá as experiença dessa vida que vivi...
A Natureza é sábia
Mais sábio quem a domina
E era o caso de Cardoso que cumpria a sua sina
Pra problema de coluna as compressa de mestruz
Mas se o problema era de amor, o assessor era Jesus
As mistura que fazia, que fugia à compreensão,
era o segredo das compressa até hoje sem solução.
Que medicina, qual nada !
Cardozinho nunca que estudou pra ser doutor
Se vestia de vermelho que é pro sangue não manchar
Mas na hora do aperto, não era os branco que íam chamar
Se sarava ? Mas como não ?!
Nunca houve paciente com a consulta reclamada
E se hoje parece mentira é porque nessa vida
se acredita mais em nada
Mas é pra isso mesmo que hoje venho aqui
Pra contá as experiença dessa vida que vivi...
A Siá Benta foi exemplo
o exemplo que ficou
que deu fama pro remédio que Cardoso inventou
Indiozinho foi chamado depois de muito falatório
Pra dar sua opinião e prestar seu ajutório
O problema não era grave, mas coisa feia de se ver
Pois a Siá, das mais puritana, demorou pra recorrer
As hemorróide lhe incomodavam desde sua mocidade
E as vergonha só se renderam no avançado de sua idade
Cem ano tinha frouxo a matrona que se dizia Benta
Pois só a hemorróide tinha uns setenta, como pude comprovar
E como pra magrinha não servia,
Cardozinho se contorcia até chegar no tal lugar
E há quem não acredite e até torça o nariz
E de que vale a vida pra quem não é aprendiz
Mas é pra isso mesmo que hoje venho aqui
Pra contá as experiença dessa vida que vivi...
Puxou, sem tremer no gambito, uma raiz diferente
Que assustou a toda gente que presenciava o atraque
Negaceou e pediu um mate, pra mostrar tranqüilidade
Pois apesar de ser garoto entendia das psicologia
que aprendera com uma tia dessas que tem nas bailanta
Que o avô lhe levava toda Sexta-feira Santa
A raiz era meio escura puxada pro avermelhado
tinha formato comprido de deixar burro envergonhado
Muita gente lhe assuntou, Cardozinho tome tenênça
A Siá Benta é vivida já tem muita experiênça
Mas num tem um outro jeito pra tira a maledicênça ?
Cardoso não era de dar ponto sem nó e sabia o que fazia
Pediu pra o povo sair, metade já tava com azia
Apesar de que quem tava lá, como eu, pronto percebia
a outra metade sestrosa, curiosa se entertia
Quem da sala não saiu, como este que vos fala
Viu coisa que Deus duvida
Que a memória não me falha !!
O curandeiro, com a raiz na mão, eu descrevo como posso,
Vô rezá até um pai-nosso pra poder continuar
O caminho era difícil mas o índio não se rendeu
Se atracou com a hemorróida, foi difícil separar,
Mas fez o que tinha de ser feito, foi o que me pareceu
E a Siá Benta, no início contrariada, só um gemido foi que deu
Todo o procedimento foi o ensinamento que a vida lhe ensinou
Não esquecendo o avô, que a cirrose já levara
Cardoso era esperto como cobra na taquara
Lembro como fosse 'inda agora tudo que se deu naquela hora
Do início ao meio e fim, sei tudo tin-tin por tin-tin
imbora ninguém me acredite
e engraçado que eu, que sofro com a nefrite
vou sofrer a vida que me resta,
pois Cardoso já se foi e o destino me pregou peça
Como já dizia, não gosto de perder o detalhe
e peço paciência mais uma vez, Remião, seu Juarez
Pois se a memória não me falhe, muita coisa aconteceu
era um raspa aqui, ferve ali, mistura outro tanto
invocou-se tanto santo que a Bíblia toda era pouco
E antes que eu ficasse louco tomei nota de tudinho
naquele meu caderninho que vancês tão vendo ali
É pra isso que venho aqui
Pra contá as experiença dessa vida que vivi...
Se aprumem nos banco que essa história chega ao fim
de antemão peço desculpa se os detalhe são pesado
Se fosse o vigário, dono do confessionário,
não sabia tanta coisa como pude saber à la cria
que me fez acreditar que pra tudo tem concerto
faça frio ou faça sol, faça chuva ou geada, seja noite ou seja dia
A raiz era milagrosa, essa pude testemunhar
mas o preparo da beberagem é que era de se admirar
e o segredo da medicina inté hoje ninguém sabia
se eu não fosse lhes contar
Cardoso, mui estropiado, da peleia empenhada
com aquele fim de tripa que insistia em incomodar
era homem genioso, que nada fugia ao olhar
enquanto se preparava pro embate final com aquelas prega
que mais parecia de uma égua cansada da porfia
olho à olho, se assim me permitem falar,
o Cardoso cuidava a ferida e com o rabo da vista me via anotar
No final da valentia, pois é assim que o povo considerou
O índio curou a matrona, prima da Siá Dona,
que pronto voltou a sentar
A gente admirada que não havia presenciado,
quis saber do acontecido com requinte dos detalhe
Puxei do meu caderno,
que usava desde a escolinha da professsorinha Rosa
Me endireitei todo prosa pra começar a contar
da façanha do Cardoso que o povo estava a testemunhar
E disse:
Carma aí! É pra isso mesmo que hoje venho aqui
Pra contá as experiença dessa vida que vivi...como já lhes havia dito.
Num relance de trovoada,
que faz a gente se dá conta que o raio já passou
O índio tinha tirado do meu bolso o caderno com todo o rol
Esse mesmo que vancês tão vendo ali,
se arrancou do meu paletó mais rápido que lambari
quando percebe o anzol
Desde então trabalhei de sol à sol rebuscando nas idéia
e tentando convencer o índio a me devolver o segredo da panacéia
Mas Cardozinho, que aos quinze ano, da vida já conhecia a metade
Me fez uma proposta que nem coió não recusava:
Me devolveu o caderno oferecendo sociedade.
Foi mais ou menos ansim, pois não confio na memória
Mas não vou incurtá a história sem receio e sem desdita
pra dizer que a beberagem hoje é marca de bebida
famosa em toda venda desse rincão valoroso
Que eu mesmo engarrafava e que tinha nome garboso,
diga lá quem nunca precisou um gole
do Pau do Índio Cardoso !!!!!
- Mas e a fórmula ? - perguntou um xirú alvoroçado, se atirando no caderno que ficava num estrado.
- Não carece disso não ! -inda tentei lhe avisá antes que desse no pé.
Ma' logo, logo dava a ré, se bem conheço o problema.
hemorróida não é coisa pequena e o papel não é garantia.
e nem vai ter serventia, (e correndo cria bolha).
Cardozinho devolvera o caderno sem as fôlha.