Excerto de Uma Ode

Fernando Pessoa

Vem, Noite antiquíssima e idêntica
Noite Rainha nascida destronada
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito

Vem, vagamente
Vem, levemente
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas
Funde num campo teu todos os campos que vejo
Faze da montanha um bloco só do teu corpo
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo
Todas as estradas que a sobem
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora
Na distância subitamente impossível de percorrer

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas

Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos
Vem, e embala-nos
Vem e afaga-nos
Beija-nos silenciosamente na fronte
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida

Vem soleníssima
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega
E só vemos até onde chega o nosso olhar

Vem, dolorosa
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado
Para teu agrado silencioso e fresco
Uma folha de mim lança para o Norte
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei
Outra folha de mim lança para o Sul
Onde estão os mares que os Navegadores abriram
Outra folha minha atira ao Ocidente
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro
Que eu sem conhecer adoro
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé
Ao Oriente pomposo e fanático e quente
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta
Ao Oriente que tudo o que nós não temos
Que tudo o que nós não somos
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo

Vem sobre os mares
Sobre os mares maiores
Sobre os mares sem horizontes precisos
Vem e passa a mão pelo dorso da fera
E acalma-o misteriosamente
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa
Vem, maternal
Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas
E que viste nascer Jeová e Júpiter
E sorriste porque tudo te é falso e inútil

Vem, Noite silenciosa e extática
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração
Serenamente como uma brisa na tarde leve
Tranquilamente com um gesto materno afagando
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a Lua máscara misteriosa sobre a tua face
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens
Quando tu entras baixam todas as vozes
Ninguém te vê entrar
Ninguém sabe quando entraste
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe
Que tudo perde as arestas e as cores
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem

A Lua começa a ser real

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